segunda-feira, 30 de maio de 2011

Distraído ouvindo a gaiola canariar, o coronel palita os dentes quando, de repente, um menino empregado interrompe a leitura da pequena hóspede de olhos verdes, que atende por Clara. O homem na cadeira de balanço é também o dono de todas as coisas ali. Na estranheza de seu olhar a distância do impressentido amor: “Que é?” O menino responde: “Uma onça matou meu pai.” O silêncio das coisas que não estão acontecendo se fez. No estômago de Clara uma perna de carneiro chutava com força. “Por favor, devo ser apresentada.” O menino empregado, que é também a infância do meu herói, parecia intratável, talvez uma pedra, talvez uma testa enorme e desfigurada, por isso os demais criados o levaram antes que pudesse devolver à jovem o cumprimento. Clara mal abre a boca. O herói infante arqueja: “Sabe, hoje ouvi tantas modas! Todas sobre peixes...” Cantava sempre uma que parecia ter sido escrita de propósito para ela. De algum modo livre, o menino aproxima a boca do ouvido de Clara: “Conheço uma adivinha, toda em poesia, e toda sobre peixes.” Ela queria ver tudo, numa sensação imediata da vida desperta. O coronel só sabia da dívida que tinham com a terra e que era preciso pagar. A terra era uma prisão. Observando a aia parda que lhe atraía tanto, o velho proprietário pensou: “Que é que eu vou fazer?” Uma das sobrancelhas erguidas, bateu o cajado-estaca no chão e levantou-se: “Onde está o criado que devia responder?” A luz já não fazia parte do cenário. Seguiu-se então um confuso rumor. Eram as moscas. Na medida em que as moscas avançavam, os pombos fugiam. Confuso, o dono pediu aos pombos que voltassem submissos. Então Clara, numa voz que parecia mais um arrulho: “Seria um prazer.” E voltando-se ao anfitrião de bigode: “Posso?” O bode não responde sim: “Primeiro o peixe deve ser pescado, depois comprado.” Num sussurro simulado, a jovem olhou para o homem como se visse um condenado a morrer. “Muito obrigada, mas de fato não preciso do seu lugar.” Nisso, o menino sentiu a existência embalar seu corpo e, então, eles dois, Clara e o pequeno sertanejo, caminharam por cima das posses. Ele pôs a enxada ao ombro e seguiu lentamente a caminho da roça, até que puderam ver o capim ainda molhado de sangue. Do cenário exalava um cheiro novo, e ela reconheceu o contraste no ato. Era o sangue do soldado morto tingindo o descampado verde. O menino não sabia que a cidade existia, nem mesmo que havia um país. Ele ignorava o que eram os pintores, mas conhecia a poesia. Ao ver Clara perseguindo o xale que flutuava, enxergava também a música. A pequena era tão fria quanto a terra, e porque o céu o odiava, ele começou a sacudi-la de um lado para outro com força. Ela não opôs a menor resistência, mas seu rosto foi ficando cada vez menor, e os olhos maiores, muito grandes e verdes a ponto de se fundirem em apenas um. O olho de mulher crescia como o sol na alvorada, e o menino empregado não teve mais dúvidas. Era ela a bruxa que procuravam. No palco do desmantelo, a sombra que absolve os pecados da terra numa enorme cova. Só depois, com a falta do sonho fugaz da realidade, o herói que perdera o pai maldisse todas as onças. Nesse exato momento, a menina rosnou. Ele sabia, tristonho, que não tinha capacidade para matar a onça, mas podia tocar no segredo íntimo dela: “Em que você se transformou?” Clara respondeu: “Na sua vida, tenho certeza.” O herói finalmente chorou: “Se você realmente estivesse no meu sonho teria gostado, ouvi tantos poemas, todos sobre peixes!” Enfim, algumas horas depois eles retornaram. Pela primeira vez, pediu a morte o meu heróico infante. A menina voltaria logo para casa, tão longe dali, enquanto ele mastigava uma vida inteira para chegar ao seu destino.

domingo, 29 de maio de 2011



Todos à convocação do diretor que não manda sozinho na história. "Vamos fazer juntos o filme." Vozes, gestos, sombras e luzes. O cenário é uma floresta de signos, um emaranhado de vida em toda parte. O deserto sem camelos é também o refúgio da amante do grão-senhor, Ismália. Quando o senhor se vira, ela morde a borda das taças de coral e mastiga os fragmentos antes de engolir. No escuro, em gorro de dormir, a imaginada proprietária do lugar sonha com uma forte bofetada. O par de meias do queixo pontiagudo avança atrás das mudas para o feitiço. Colhe amoras, goiabas bichadas e espera que seu irmão junte as pitangas no bolso. No caminho ficam os rastros de filó preto. Clara ou Ismália é por quem o diretor grita e depois sussurra. Perdido no mar que é o olho único de esmeralda, o homem não passa de um antigo revendo o caminho passado. Lá, encontra uma parede muito alta. Então, coça a cabeça e pensa no domesticado e no rebelde e em suas vidas sobre espera. O filme que dirige não vai acabar, pois estão sujos, com medo, frio e fome. Além dos animais, caminham o diretor e o espectro gelado da atriz. Anoitece sem lua pra celebrar, e quando eles chegam no terreiro são apenas quatro velhinhos encolhidos, um homem bêbado mais dois senhores de terno. A lua sabe o que a espera, por isso se esconde. Ismália serve o banquete enquanto pensa nas pitangas do irmão. "Nunca entendi como funciona a máquina de descaroçar, embora saiba que a moral cheia de caroços não basta... os meninos da escola estudam as sementes o tempo todo." O diretor que foi o primeiro no ritual canibalesco a confortou: Só um peixe que tenta adivinhar o oceano arranca do desepero uma gota de esperança. Dito isso, a lua apareceu e enfim Ismália pode flutuar em sua direção. Apenas quando chegou lá bem no alto, eles perceberam que a lua era o rosto esbofeteado de Clara.

quinta-feira, 19 de maio de 2011


O meu herói é um sertanejo perseguido pela polícia, ao mesmo tempo em que sonha com uma história de amor. Todos esperam fugir com o que ele esconde, e sentem muita sede, mas a água é propriedade da mulher que esfria sob a iluminação dramática da biblioteca. Ele se pergunta se ela estaria no palco de encenação das nuvens, enquanto a moça é envidraçada, como ossos de crianças vendidas por igrejas romanas. Ele, que um dia guardara o sonho no fundo dos olhos, foi o arquétipo romântico que a leitora inventou. Rebelde, apaixonado, veio atrás da observadora estática de um olho único. Eram tantos livros que ele apenas sorria com seu par de órgãos em movimento constante. Bastava. Ela era cinza, fria e dura mesmo antes de morta. Agora, as esmeraldas pelas quais ele se perdera cabem num baú sob a terra. A terra é lugar dele também, mas seus pés ainda pisam o chão, e ele sente na palma a correnteza do rio que passa por debaixo. Seu nome, o pai lhe dera porque achava bom. Vinha de uma família de homens. Fosse um nome de mulher como Ismália, ele mesmo, o pai, levantaria uma torre alta para pular no espelho em noite de lua gorda. Mas a mata, a biblioteca, e todo espaço é agora para o meu herói um tempo em suspensão, onde se encontram o silêncio e a ausência. A mulher morta que ele amou sempre teve predileção pelo oculto e pelos labirintos cheios de dobras como origamis. Ela não buscou nada, tampouco fugiu, mas ele foge o tempo todo, e também busca e carrega o que pode. Para trás apenas a cabana queimada, sem sementes. Conforme a hora do dia, ele chega numa praia e observa o mar aludindo ao eterno movimento do universo e da vida. O fim do mar não há, mas o outro lado sim. Do outro lado, os pássaros observam o snorkel no arquipélago. Na Ilha, meia dúzia de esposas sabem que o céu está a venda, e do barco o homem do leme grita pra elas: "Forjai lâminas!" Elas tremem pois sabem que precisam mesmo das armas. Meu herói, que já não é mais um menino, nunca teve mãe. Um menino, se descoberto, foge pra casa mesmo que sua mãe não permita a sua entrada e o obrigue a se desculpar com as onças. O meu herói não vai poder terminar a sua caminhada em busca do arco-íris. Ele mergulha no tanque elíptico do infinito para esquecer que nunca deixou de ser homem. Nadando o quanto pode nesse espaço que não se permite conhecer, atualiza-se em peixe, renascendo do inusitado, e adquire formas e cores variadas, fazendo seu corpo flutuar no encantamento.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ereta na cadeira rígida da biblioteca, Clara sente algo. O rapaz contempla seu ídolo com duas sementes vistosas, a que ela retribui com única mas gigantesca gema de esmeralda. Ele estava perdido. Não por estar longe de casa e sim por não conhecer o mar. Ela sentia frio, e o frio a endurecia mais e mais. Tudo dentro do seu corpo congelava. Logo compreendeu que acabava ali. Seu pensamento não foi outro além de "como estou cansada de prestar sempre contas à razão!" Mesmo assim, esperou até a exaustão naquela estranha brincadeira de imitar ossos. Depois, resolveu participar de um filme que contava uma história de fantasmas. Dois roteiristas e o diretor aguardam por ela. Algum tempo depois, Clara está sendo empurrada por eles para dentro de uma água profunda e negra. O diretor pergunta: Você está com medo? (Ela não está) Eu morri - responde. Estou morta.
O ator coadjuvante se aproxima sem pensar e intui que tudo seja um sonho. Clara lhe dirige um olhar de predador em direção à presa, depois fala calmamente: Pode ser o sonho de vocês, não o meu.
Um inexplicável pavor começa a crescer dentro de todos da equipe de filmagem... Eu continuo sentada olhando para a tela, que cambia entre tons do cinzento de um céu de fumaça. Pouco a pouco então levanto o meu corpo e dirijo ele para a minha casa. No caminho não encontro nada. Apenas um vento suave e uma chuva silenciosa de maio.

“Camêlo assado!” Ismália num grito agudo, doído. ”É tão bom quanto dromedário, mas rende mais porque tem duas corcovas!” Como se assustaram diante da pequena, encolheram-se os velhos num recuo tremido, um por cima do outro, sujos da terra. E porque estava quase nua aos farrapos de filó, meias esticadas até os joelhos, num espaço cheio de farpas, Clara notou petrificada que as mudas precisavam respirar. ”O que acha?” perguntou o bêbado de camisa marrom. “Sinceramente, eu acho que cabe a cada um comer ou não comer aquilo que não for bastante casto” - a resposta. Os outros três cavalheiros, ela imaginou que estivessem com frio. A mesa foi posta onde a sombra não incomoda, e então a atriz se serviu de joelhos. Um riso de ver o que tinham através das bolinhas de gude com as mãos atadas, mas estendidas, como as de sedentos levando uma cabaça vazia.Ismália repetia dentro “Deo gratias”. Não ousava se mexer, nem gritar. O irmão, de longe, descobria o horror da fome. Tudo era permitido onde crescia a relva. “Como assim?” a lua se perguntava. “Que estavam fazendo?” Estavam todos muito famintos. Ele trazia pitangas no bolso. Ofereceu uma delas a si mesmo. Uma cereja ou três gemas são apenas duas imagens, pensou. Dizendo isso, cuspiu o caroço sobre as meias que fantasiaram o queixo pontiagudo. Converteu-se em máquina de descaroçar ali no terreiro, esperando, enquanto os bichos, tão pequeninos, estavam ainda com muita fome.