sábado, 25 de dezembro de 2010

O das quinas

Os Deuses vendem quanto dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

(Fernando Pessoa)


Share


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

CHICLETES



Para mascar com chiclets
Quem subiu, no novelo do chiclets,
ao fim do fio ou do desgastamento,
sem poder não sacudir fora, antes,
a borracha infensa e imune ao tempo;
imune ao tempo ou o tempo em coisa,
em pessoa, encarnado nessa borracha,
de tal maneira, e conforme ao tempo,
o chiclets ora se contrai ora se dilata,
e consubstante ao tempo, se rompe,
interrompe, embora logo se reemende,
e fique a romper-se, a reemendar-se,
sem usura nem fim, do fio de sempre.
No entanto quem, e saberente que ele
não encarna o tempo em sua borracha.
quem já ficou num primeiro chiclete
sem reincidir nessa coisa (ou nada).

Quem pôde não reincidir no chiclete,
e saberente que não encarna o tempo:
ele faz sentir o tempo e faz o homem
sentir que ele homem o está fazendo.
Faz o homem, sentindo o tempo dentro,
sentir dentro do tempo, em tempo-firme.
e com que, mascando o tempo chiclete,
imagine-o bem dominado, e o exorcize.

(João Cabral de Melo Neto)


Share


domingo, 19 de dezembro de 2010

Vincent - Tim Burton LEGENDADO



http://www.timburtoncollective.com/vincent.html


Share


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O renascentista

Há milênios acreditei
estar imóvel nessa bola,
com o sol e as estrelas
girando em torno dela.
Mas agora tudo se move,
eu, a bola, o sol, as estrelas.
Agora os barcos navegam do verde ao azul
e, do alto, vêem a água girar
pernas e mãos em conjunto.
Vêem que o céu está vazio,
que na Terra há muito lugar.
Então, onde a fé teve assento,
repousou a dúvida.
O universo sem ponto central
e a bola rolando comigo,
na órbita dos meus olhos.
E daquela mahã dos inícios
não houve quando não visse mais.

(Aline Pereira)


Share


O relógio mecânico

Depois que os sinos convocaram às orações,
antes do olho humano o desvario,
novo intérprete do tempo
com as horas iguais aumentava
dos homens o poderio,
regulando sua exitência privada
num único e mesmo ritmo.
O toque infalível da torre
pouco a pouco deixava a lida
do artífice e do negociante preciso,
que hoje serve, conta, raciona a vida,
e a imensurável eternidade
deixou assim de ser a medida.

(Aline Pereira)


Share


O neto de São Luis

Faço canonizar o rei,
se os séculos são gêmeos,
que o poder é tanto amargo
como a porção de fel de uma coisa grande.
Por toda parte gritam,
por toda parte se queixam,
e os que reclamam não sabem,
ao implorar a justiça do rei,
que ela atinge somente
os que não o seguem.


Share


Horas temporárias

Guardo o tempo na carteira,
por hábito e organização,
mesmo sabendo que um dia,
do nascer e do pôr-do-sol,
nenhum outro ritmo
alterava a minha vida.

(Aline Pereira)


Share


quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Só Dez Por Cento é Mentira - Trailer

Acordei e não o vi. Também não vi o meu armário, nem a minha cama, nem a minha estante, nem a minha poltrona, nem a minha mesa, nada, nem uma só peça do mobiliário, absolutamente nada, quando na noite anterior eu não seria capaz de um movimento sem tocar em meus pertences.


Share


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Tudo aqui deve ser considerado como dito por personagens, pra começar, uma imagem, que é também uma cereja que ofereço a mim mesma. Uma cereja ou três gemas são apenas duas imagens, como o verde, que nem é feliz, mas me mantém encantada mesmo assim.


Share


Um prego no alho, bem como um laço de língua, não talha farpas, só porta marcas. Tratado o rastro, um risco já à míngua, frita-se o alho sem muito gasto e, como num passo, solta-se o laço da língua.


Share


sexta-feira, 20 de agosto de 2010


Acabei de ler hoje de manhã As Aventuras de Pinóquio, uma novelinha que eu adorava quando criança, pois achava o máximo um boneco de madeira que podia falar e ir à escola, assim como gostava da Emília de Monteiro Lobato, uma tão infernal quanto o outro (e foi Lobato um tradutor de Pinóquio). De qualquer modo, algo diferente do que quando eu era criança me fez começar a ler o folhetim de Carlo Collodi, reconhecendo no florentino um baita dum sádico, não filosoficamente falando, mas perversamente mesmo. Pinóquio é um traste, metáfora para toda criança indomável, metáfora para a própria humanidade. O fantástico serve ao pedagógico e à imaginação do infante-juvenil. Pinóquio é burlesco, um fantoche patético desejoso e viciado, experimentando um irreconciliável conflito entre o que ele é e o ideal de ser um menino de carne e osso. Sustentado pelas figuras alegóricas do grilo e da fada, o espiritualismo romântico dá o tom da história, cujo dilema consiste no que parece bom, de um lado, e no que se revela bom, de outro. Como toda fábula, a verve é moral, pedagógica, trata do bem e da verdade. Por fazer parte do Romantismo, a narrativa se estrutura sobre um ideal de homem sem vícios. Assim, o tema de Pinóquio é a humanização, com base num humano ideal, muito distante da realidade apresentada pela narrativa. O homem, no romance, se parece mais com um boneco de madeira, pois carrega a mentira, a preguiça, a soberba, o egoísmo, a estupidez. Enquanto que a verdade é algo totalmente idealizado, o boneco pode se transformar no perfeito, ou seja, no homem ideal. Dentre todos os conflitos que apontam para o deslocamento do eu romântico da sociedade, isto é, o desajuste desse eu perante a sua realidade social, temos o embate rousseaunista entre a cidade e o campo, a primeira, ambiente da civilização, onde está a escola, de onde Pinóquio não pode sair se deseja se tornar um menino de verdade. O segundo, lugar da Fada, mãe do boneco, a Natureza, que surge num estado de pureza e frescor, ora como a linda Criança dos cabelos azuis, ora como uma jovem de cabelos azuis, ora como uma cabra de pelos azuis. A sociedade é o lugar onde Pinóquio é corrompido, devido ao contato com os maus companheiros. Contudo, o boneco sempre acaba sofrendo as consequências de seus atos de desobediência. Essa dor é fundamental no processo de crescimento espiritual de Pinóquio, para que ele se torne de carne e osso. É necessário, mesmo assim, que o boneco abdique de si próprio em prol de um sentimento sublime, que é o amor por seu pai, o velho Gepeto, para que só então ele se torne um menino. Pinóquio deve ser um herói para virar humano, que não apenas aprende que deve obedecer, estudar e trabalhar bastante, mas que precisa dar a sua vida por amor. Esse gesto heroico e pra lá de romântico é o que torna possível o sonho do boneco. Ao se descobrir menino, ele exclama: "Como fui ridículo enquanto fui boneco! E como sou feliz agora que me tornei um menino bem-comportado!" Tudo assim, muito simples...


Share


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Miragem

Vi uma luz que brilhava tanto,
vinte mil léguas descia,
num espelho que ofuscava
a minha tarde vazia,
tão cheia de tons imprecisos...

Os olhos afogados no mar
que não era de leite, só era branco,
não viram mais nada além do branco.
No abraço de luz, do primeiro encontro
toda cor se dissolveu.
E pensava, seria fácil e até cômico
não sentir que eu era meu.

Quase tudo eu faria, quase,
por uma vida de contemplação,
porque sou um animal idólatra.
Doze rimas eu faria,
fizesse voltar cada uma um dia,
mas, se o tempo é sempre igual,
posso costurar ele de dentro pra fora.

Despede, clarão infeliz, de tudo que vive aqui,
só, com a minha cicatriz, devo achar o que perdi.
Porque passo e torno a ficar, sei quem sou;
não preciso de nome, apenas recordar de uma cor.
Que é certo, vou me curar numa viagem,
tão logo do brilho intenso dessa miragem.


(Aline Pereira)

domingo, 1 de agosto de 2010

Anorgasmia


Logo embaixo daquelas letras divertidas, eis que me deparo com a seguinte chamada: "Orgasmo, garanta já o seu!!!" Parei ali e fiquei um tempinho pensando, não sabia que já estavam vendendo orgasmos no mercado... Corri as páginas até o editorial, e lá estava uma bonequinha de plástico nua deitada de bruços, e mais garantias: "... Se for o caso, prolongue". Fui então, curiosa, até a página 74.

(A.P.)


Share


Fotografia


O sol do fim do dia

O fim do dia
é só o fim do dia,
ainda que pareça
o sol do fim da vida.

(Gabriel da Matta)


Share


segunda-feira, 5 de julho de 2010



Passos é um antigo sozinho, orgulhoso e disciplinado. Revendo o caminho passado, cheio de coisas desinteressantes, decide tirar um dia e acaba entrando num outro mundo. Lá, encontra uma parede muito alta pra caber o retrato do chefe da família. No trono, aquela que o serviu com obediência. Altivo, à esquerda dela, o jovem imaturo forçado a se casar. Gente confusa e seus casos arranjados. Passos vai e volta entre as histórias, troca artesanatos de luxo que provocam cíúmes entre as mulheres. Então coça a cabeça e pensa no domesticado e no rebelde. Suas vidas eram sobre espera.

(Aline Pereira)


Share


terça-feira, 29 de junho de 2010



No vácuo ao largo, um corpo que arde

Inválido bardo ao canto, debalde:

E treme com febre, mas finge que escreve,

pendido à muleta um palhaço perneta.

Tal bobo, sacode e balança na corda,

e bêbado cede a perna, que esquece

sentindo no alto a lambida de vida

da lua, acordada, e ao meio partida.

"Falta a mim também um pedaço"

Volta à musa em consolo o palhaço,

sem dela enxergar toda a pança,

quando vem da plateia um Oh!

Arregala-se, gira o braço,

busca a amiga fatal do espaço,

e lunático em queda ele dança,

sozinho, sem partes, sem dó...




Share


- Moreau: "Vous avez donc la prétention de restaurer l'art par la danse?"
- Degas: "Et vous, prétendez-vous le rénover par la bijouterie".


Share


sábado, 5 de junho de 2010

Mulher Menina - Raphaello Mazzei




Share


terça-feira, 25 de maio de 2010

"O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve com a morte ou com a cura. (Antonin Artoud)


Share


terça-feira, 4 de maio de 2010


A maneira é sem eira,
sem rima,
nem tento.
À beira um teatro,
um hospício,
dois remos.

E torto, sem lenço,
invento à vontade,
existo tão tarde...
Acendo um incenso,
vagueio, desejo,
e viro e bocejo.

...

Piso tanto palco, falto
à mim mesmo num beijo.
Vivo como faço arte,
num volteio te vejo.

O pouco que fico
me sinto à vontade,
existo tão tarde...
Acendo um incenso,
vagueio, desejo,
suspiro e bocejo.

(Aline Pereira)


Share



VIII
Le gouffre

Pascal avait son gouffre, avec lui se mouvant.
- Hélas! tout est abîme, - action, désir, rêve,
Parole! et sur mon poil qui tout droit se relève
Mainte fois de la Peur je sens passer le vent.

En haut, en bas, partout, la profondeur, la grève,
Le silence, l'espace affreux et captivant...
Sur le fond de mes muits Dieu de son doigt savant
Dessine un cauchemar multiforme et sans trêve.

J'ai peur du sommeil comme on a peur d'un grand trou,
Tout plein de vague horreur, manant on ne sait ou;
Je ne vois qu'infini par toutes les fenêtres,

Et mon esprit, toujours du vertige hanté,
Jalouse du néant l'insensibilité.
- Ah! ne jamais sortir des Nombres et des Êtres!



O Abismo

Pascal via a seu lado o abismo que o atraía.
Ah, tudo é turbilhão: ação, sonho, desejo,
Palavra! E sobre mim arrepiando-me vejo
O pavor perpassar como uma ventania.

Em volta, no alto, embaixo, a profundeza, o enorme
Silêncio, a apavorante e infinita amplidão...
Em minhas noites, Deus, com sua sábia mão
Desenha um pesadelo infindo e multiforme.

Tenho medo do sono, o túnel que me esconde,
Cheio de vago horror, levando não sei aonde;
E só vejo, pelas janelas, o infinito.

A essa vertigem, tu, meu espírito aflito,
A insensibilidade do nada preferes:
Ah, não sair jamais dos Números e Seres!


(Charles Baudelaire)
Trad. Ivan Junqueira


Share


Nota

"As ideias são intuitivas, rápidas: qualquer ingênuo as capta.
Os pensamentos são lentos, reflexivos, doloridos. Só os viciados..."
(Dante Milano)


Share




O Muro

É um velho paredão, todo gretado,
Roto e negro, a que o tempo uma oferenda
Deixou num cacto em flor ensangüentado
E, num pouco de musgo em cada fenda.

Serve há muito de encerro a uma vivenda;
Protegê-la e guardá-la é seu cuidado;
Talvez consigo esta missão compreenda,
Sempre em seu posto, firme e alevantado.

Horas mortas, a lua o véu desata,
E em cheio brilha; a solidão estrela
Toda de um vago cintilar de prata;

E o velho muro, alta a parede nua,
Olha em redor, espreita a sombra, e vela,
Entre os beijos e lágrimas da lua.

(Alberto de Oliveira)


Pedro Marques sugere que o muro pode representar um patriarca que zela pela família. Segundo o estudioso, enquanto todos dormem ou cuidam de seus interesses, o velho (muro), com a experiência acumulada nas rugas (rachaduras), vigia a morada. (Aline Pereira)

Mundo Interior

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
Do sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, – a natureza externa, –
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E, contudo, se fecho os olhos e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia, – e dorme.

(Machado de Assis)



O abismo na obra machadiana está relacionado ao mistério. É como se em cada indivíduo houvesse uma multiplicidade ainda maior do que a superfície terrena. Nesse aspecto, Machado se afasta do parnasianismo, pois este se fixa nas superfícies, nas formas. Contudo, o eu lírico machadiano não se aprofunda, retendo-se na observação. A ressonância decadentista vai além do sadismo, na influência do abismo baudelairiano, ligado à consciência da própria condição de exilado. Em termos cristãos, as duas principais criações divinas são confrontadas, a natureza e o homem. Portanto, o abismo machadiano como o de Baudelaire, reconhece o homem como um ser proscrito. O homem vive exilado pelo próprio Criador, estando dentro, mas fora da natureza ao mesmo tempo, percebendo-a como a feiticeira mais poderosa que a imaginação poderia conceber, ou seja, a natureza parece assustadoramente misteriosa. Ao tratar do abismo da alma, da grandeza trágica da existência humana, ele faz um percurso na contramão do cientificismo, localizando o homem na condição miserável de ser impotente. (Aline Pereira)

O super-heroísmo de Edward Cullen e a volúpia reprimida de Bella Swan


Crepúsculo (2005), o primeiro romance da série de ficção sobre vampiros
que consagrou Stephenie Meyer, desencadeando um verdadeiro surto adolescente, rompe com a tradição da literatura ocidental e subverte o mito literário de matriz byroniana num herói/vampiro. A escritora, formada em literatura inglesa, dá voz à Bella, que narra suas experiências a partir do contato com Edward Cullen, uma espécie de Dorian Gray às avessas, por suas reservas morais e seus dilemas éticos. Fora isso, como produto cultural de massa, o best seller da estadunidense não traz nada novo. A fantasia em Crepúsculo se mistura aos desejos da narradora, uma garota que aos dezesseis anos se vê totalmente envolvida pelo irresistível, mas sombrio, Edward. O jogo de sensualismo e mistério desenvolvido pela narrativa em primeira pessoa vai apresentando a descoberta do prazer erótico pela garota, porém Edward Cullen, o favorito da narradora, objeto de sua ânsia sexual, é impenetrável. Por desejar muito a jovem Bella, Edward entra em choque com os princípios norteadores de sua conduta, passando a representar uma ameaça a ambos, mas como ele ama a garota, deve protegê-la. Assim, temos a forte influência dos desejos eróticos, todavia sublimados, porque Edward, temendo ser traído pelos instintos, é incapaz de viver a experiência, para não fazer mal a Bella.
Tal conflito seria irrelevante para vampiros como Drácula, ou Lestat, exemplos de representações da aristocracia decadente, pois ao contrário de Edward, inclinado a tendências tipicamente burguesas de moralização, aqueles encarnam a perversidade, ou, quando muito, como no caso do vampiro Louis, em Entrevista com o vampiro (1976), de Anne Rice, o dilema ético sucumbe à natureza satânica. Crepúsculo se inclina à influência romântica, sobretudo de gênese inglesa, relacionando-se com a obra de autores como Wordsworth, que investiram no cotidiano (os personagens vão à escola, cozinham, mandam emails, banham-se, comem, escovam os dentes etc), na simplicidade do tema (o dilema ético-amoroso de um casal jovem e belo), na romantização do lugar comum (Bella é a princípio mais uma no mundo, mas com seus atos se mostra especial), na comunhão com a natureza (inicialmente, Bella não gosta da paisagem, porque está infeliz, porém, após Edward, tudo muda para melhor) e no maravilhamento com o trivial (os fantásticos Cullen preferem ser comuns). Por outro lado, Bella Swan nutre um fascínio tão intenso pelo proibido, que negligencia a própria segurança, de modo que a ligação do sexo com o mistério, com o pavor e com a morte aponta para uma temática preconizada na obra de Samuel Taylor Coleridge, tema caro ao poema narrativo vampiresco, Cristabel (1916). Sob influência do pré-romantismo alemão, o mito literário se apresenta analogamente ao observado em A noiva de Corinto (1797), de Goethe, inspirado no mito grego das lâmias, protovampiras que seduziam os homens para beijá-los e matá-los. Em Crepúsculo, entretanto, a razão ganha poder diante do desejo, porque existe um ideal amoroso, e o vampiro consegue controlar seus impulsos sexuais. As idealizações morais levam os Cullen a manter as presas fatais longe dos humanos.
Edward Cullen é um perfeito herói romântico inadaptado na sociedade, confiante numa quimera de bem cristão. Ele tenta ser plenamente bom e, para isso, trava uma luta interna, sacrifica-se e reduz-se a um patético desejoso, contra uma natureza representada pelo sexo e pela violência. O jovem centenário reúne em torno de sua figura características tão encantadoras que o tornam sobre-humano. Descrito num primeiro momento por Bella como “alto”, “magro, mas ainda assim musculoso”, o cabelo “louro cor de mel”, ele era “pálido como um giz”, os “olhos muito escuros” – que mudariam de cor –, com “olheiras – arroxeadas, em tons de hematoma”, como refém de uma “noite insone”, ou de um “nariz quebrado”, mas o nariz tinha todos os traços retos, perfeitos e angulosos, o rosto tão diferente, “completo, arrasadora e inumanamente” lindo (MEYER, 2005, p. 22). Toda sua constituição é sedutora, seus gestos, sua voz, o sorriso absurdamente belo, a rigidez anormal da musculatura, sua força física e velocidade, descomunais, seu hálito é tão perfumado que inebria, e sua riqueza, sofisticação e elegância, a inteligência e o conhecimento, tudo em Edward é perfeito: ele é de fato sobre-humano. Contudo, após conhecer a jovem filha do policial Swan, seus dons fazem-no sentir-se amaldiçoado, tornando o amor dos dois algo impossível.
O juízo é fundamental para Edward e sua família de vampiros, estruturada em torno da liderança do médico/patriarca, que os transformou para salvá-los da morte definitiva. A família Cullen finge, em vão, ser comum, e repudia o “sobrenatural” numa tentativa de negar seus instintos bestiais. Em vez de caçar humanos, eles se alimentam do sangue de ursos, em áreas onde a lei dos homens permite caçar, reprimindo sua natureza predatória, em nome do bem comum social. A questão se resume numa postura moral rigorosa de vampiros que simulam um estado de controle e normalidade. Edward é assim um perfeito herói romântico, que sofre porque não tem coração. Ao esconder os poderes físicos e psíquicos em prol da ética, ele abdica de sua plenitude existencial, devido à firmeza de seu caráter. Seguindo os critérios de julgo burguês, o sedutor “garoto mais bonito da escola” é capaz de controlar os instintos, modelando suas atitudes, tratando-se, portanto, de um vampiro que aprendeu a ser politicamente correto, o que descaracteriza aspectos caros à tradição ocidental do mito na literatura.
Em determinados aspectos, como não poderia deixar de ser, Crepúsculo herda uma série de referências à imagem do vampiro como sedutor fatal, disseminadas a princípio no conto de John William Polidori, O vampiro (1819), e no belo Fragmento de um relato (1820), de Lord Byron, retomadas inúmeras vezes na literatura, cristalizando-se no célebre Drácula (1897), de Bram Stoker. Edward reúne as características byronianas por ser “romântico, atraente, misterioso e trágico”, um verdadeiro herói com o “poder vampírico da persuasão e um magnetismo sensual (...) ocultando um segredo terrível”. Por mais que se esforcem pelo contrário, os Cullen não deixam de parecer “solitários e à margem da humanidade”, e Bella imagina se eles saíram das “páginas reluzentes de uma revista de moda, ou se foram pintados por um antigo mestre como a face de um anjo”. De fato, a garota percebe que Edward esconde um passado obscuro, o que só faz aumentar a sua curiosidade, e a curiosidade voluptuosa é o que deixa Bella em perigo, assim como acontece com as vítimas dos contos de Polidori e de Byron.
Contudo, ainda que goste de parecer fascinante, Edward não quer ser fatal. Ele sente-se uma aberração, enquanto Bella acredita ser inferior a ele em tudo. À luz do sol, a pele dos vampiros cintila, por causa disso, os Cullen escolhem a pequena e sossegada cidade de Forks, onde quase nunca faz sol. Para se adequarem, a família do Dr. Carlisle Cullen submete-se ao cotidiano, seus membros trabalham, estudam, ainda que não precisem – são muito ricos e imortais! –, eliminando a imagem de vampiros inclinados a crueldade e volúpia. No lugar dos castelos arruinados, a residência dos Cullen é um amplo espaço iluminado por paredes de vidro; em vez de masmorras, catacumbas e sótãos – espaços de clausura que remetem ao inconsciente –, o vampiro/herói leva a moça agarrada em suas costas para um passeio fantástico, um vôo numa velocidade indescritível. Por algum tempo, essas novas experiências acabam levando à sublimação do desejo íntimo dela, que é ser iniciada por Edward. Contudo, a frieza e a aura de mistério são marcas indeléveis dos Cullen, e mesmo após estreitar sua relação com Edward e sua família, Bella é incapaz de dissipar tal impressão. A moça sente atração por todos os integrantes da família Cullen, estimulada pelo fato de serem perigosos. Para a narradora-protagonista, isso torna o relacionamento com Edward uma aventura muito mais excitante e cada vez mais arriscada.
Nenhum rapaz da escola atrai Bella, mas além de Edward há outro que acaba despertando certo interesse na garota, sentimento evidentemente eclipsado pelo efeito avassalador da presença de Edward. O rapaz é Jacob, pertencente ao povo nativo da reserva florestal de Forks. Jacob conta a Bella que os Cullen são vampiros terríveis. O rapaz não se revela atrás do sorriso agradável, mas algo em sua presença sugere discretamente aspectos sobrenaturais de seu povo, aspectos estes que o folclore camufla bem. A garota, que está descobrindo a própria sensualidade, usa da sedução para tirar informações de Jacob, despertando na fera oculta o desejo erótico.
Numa linguagem próxima à dos blogs, o romance tem como foco narrativo o desejo de Bella, a sua ânsia de ser possuída, e a firmeza moral Edward. Ambos sofrem de tédio até o momento do primeiro encontro, na escola. A fome de Edward só pode ser saciada com sangue, e o contato sexual invariavelmente levaria à mordida, daí a ligação com o mito da Queda, citado na epígrafe da obra: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais” (Gênesis, 3:3). Curiosa, a frivolidade de Bella não é como a das “mocinhas” românticas típicas, visto que ela possui uma voz autocrítica rigorosa e um lado cético, que a leva a querer experimentar e arriscar-se, conscientemente. A presença de Edward anima a vida da garota, pois, antes de conhecê-lo, sua vontade era o céu azul e ensolarado de Phoenix – onde sua mãe morava –, diferente da cor cinza do céu de Forks e do verde sufocante de suas florestas. Até então, Bella parece muito ligada à infância e à presença da mãe. À medida que o vampiro, objeto de seu desejo, personifica o mistério do erotismo, Bella é atraída para o interior das florestas e passa a querer a umidade dos dias nublados da cidade onde vive agora com seu pai.
O elemento complicador, que traz ambos, Edward e Bella, de volta a realidade, é a presença de um vampiro rastreador que sentindo o cheiro delicioso da jovem, deseja intensamente beber o seu sangue. A fim de manter segura sua integridade, toda a família de vampiros se mobiliza na tentativa se salvar a vida garota. Por ser o rastreador um vampiro muito poderoso, o algoz de Bella acaba atraindo a moça, que num ato de heroísmo, embora estúpido, tenta dar a vida pra salvar sua mãe. Mas o herói/vampiro chega a tempo para salvá-la, agora um imenso desafio, pois ela está completamente ensangüentada. Para “limpar” Bella da contaminação pelo vampiro perverso que a caçara, deve ocorrer a primeira experiência de troca de fluidos entre o casal. A experiência acontece com um intuito purificador. Edward prova sua fidelidade, resistindo ao desejo crescente, e extrai da amada apenas o sangue “contaminado”.

“O rosto de Edward estava cansado. Vi seus olhos enquanto a dúvida de repente era substituída por uma determinação ardente. Seu queixo endureceu. Senti seus dedos frios e fortes em minha mão que queimava, colocando-a em posição. Depois sua cabeça se curvou e seus lábios frios pressionaram minha pele. (...) No início a dor foi pior. Eu gritei e me debati com as mãos frias que me seguravam. (...) Depois, lentamente, minha agitação se aquietou enquanto minha mão ficava cada vez mais entorpecida. O fogo cedia, concentrado em um ponto cada vez menor. (...) Senti minha consciência me escapar enquanto a dor abrandava. Eu tinha medo de cair na água negra de novo, medo de perdê-lo na escuridão.”

Após a recuperação de Bella, o casal não é capaz de interromper o romance. Por sentir necessidade de proteger Bella, Edward acaba personificando a figura paterna, relativamente ausente na vida da moça. Então, compreendemos que a maior dificuldade para continuar a relação descende dos desejos sexuais da garota e da própria insegurança diante do tempo, pois Edward nunca envelhece. É interessante o fato de Bella ser desejada na escola e fora dela, mas apenas duas pessoas realmente a atraem, Edward, um vampiro, e Jacob, um lobisomem, evidentemente inimigos, pois de acordo com a lenda assimilada na série de Meyer o sangue dos lobos agrada aos vampiros, e o lobo é justamente o totem do povo de Jacob. Algo marcante no livro é a capacidade da autora de transformar seres tradicionalmente amorais em virtuosos humanizados. A essência cruel dos vampiros é anulada em Crepúsculo, pela propositalmente ordinária família Cullen. O transtorno dos papéis familiares, típicos dos clássicos de vampiro, em que as fronteiras se tornam imprecisas, é quase totalmente anulado. Tudo nos Cullen soa burguês, há uma total ausência de vícios e nenhuma referência a tradições heráldicas, ainda que exista uma distinção clara entre os membros da família Cullen e os demais habitantes da cidade. Assim, Stephenie Meyer descaracteriza a lenda cristalizada pela literatura ocidental, e apresenta figuras deformadas pelo poder da moral burguesa, numa posição literária que se afasta das de Byron e Bram Stoker, autores basilares na disseminação do mito do vampiro na literatura ocidental. Sem dúvida, a autora é competente o bastante para despertar com seu texto emoções vazias, deixando o leitor com sede, curioso para saber o que acontecerá depois com esse namoro de um vampiro simplesmente avassalador, mas de uma beleza cansativa, com uma linda jovem inteligente, capaz de atos de heroísmo, mas imperfeita. O caso continua em Lua Nova (2008). Um dos segredos para o sucesso do livro é o heroísmo de Edward, porque ele é um vampiro, e vampiros encarnam o mal. Existe um paradoxo nisso, é óbvio que mexe com as emoções, e trata de uma questão erótica. Edward não seduz apenas porque é belo, mas também porque tem poderes, ocupa a posição de predador, tem domínio, respeito e controle. A resistência ao contato com Bella é mostra de um imenso autocontrole, o que torna o vampiro mais sensual, a partir da ânsia pelo toque entre ambos. Sob outro aspecto, ele acaba sendo cansativo, e Bella passa a se mostrar em alguns aspectos mais interessante. O problema de Edward é que ele desperta um desejo alucinado em Bella, que nunca se realiza, frustrando-a. Outra questão é que para compensar essa falta, ele mostra-se perfeito, tornando-se um super-herói, salvando-a em importantes ocasiões, uma espécie de protetor, um anjo.
O vampiro em Crepúsculo, portanto, deixa de ser uma besta, um demônio, para se tornar um ser espiritualmente elevado, embora agnóstico. O final do livro leva a esquecer do que Edward é de fato, porque ele se transforma em herói, ou melhor, em super-herói, resistindo ao gozo nocivo que o seu sexo pode causar, e Bella, uma adolescente curiosa, que precisa controlar o desejo pelo namorado, mesmo que seja um homem tão sedutor. Dessa maneira, a inquietação deriva da volúpia recalcada de Bella, e o vampiro que sobra no livro é mesmo o rastreador.

(Aline Pereira)


Share


quarta-feira, 28 de abril de 2010


“Flor da cidade, em teu perfume existe/ qualquer cousa que lembra folhas mortas,/ sombras de por de sol” Guilherme de Almeida


Share





Fulo, grito peste,
como falo fogo, tiro, pega!

Farto, rio frio,
sinto o braço fraco, tipo esteta.

Grato, troco brilho,
fito filho, mio e acendo vela.

(Aline Pereira)


Share


terça-feira, 27 de abril de 2010





Alisa a barba,
enrola o bigode,
ostenta a parda
(esconde-se o bode).

Vaza-lhe o olho,
gemem que pode,
ergue a estaca,
mostra-se o bode!

(Aline Pereira)


Share


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Das neves à traça e pasta,
o largo se encolhe breve.
Se a fruta já não me basta,
o vinho me deixa gasta.

(Aline Pereira)


Share


domingo, 7 de fevereiro de 2010

olho próprio ócio torto grata praga

dália opus nada

ou traga

ou próprio olho, torto ópio dália, nada

ou ócio e gralha


(Aline Pereira)


Share





Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum.
Benedicta tu in mulieribus,
et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Sancta Maria, Mater Dei,
ora pro nobis peccatoribus, nunc,
et in hora mortis nostrae.
Amen.
"A alma nasce velha e se torna jovem. Eis a comédia da vida. O corpo
nasce jovem e se torna velho. Eis a tragédia da alma." (Oscar Wilde)


Share


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010



Almoçei num vegetariano e invadi um culto estranho, porque isso é um diário. "Já estava assim quando cheguei", eu digo. Quero ir ao cinema, ou essa droga, não quero mais nada.

Como ser fotografada de sangue... eu prefiro um robô qualquer.

(Aline Pereira)


Share


sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

agora
arrasta
terra
bela
estrela
embora
morte
serra
sorte
afasta
riso
basta
outra
ventura
gasta

Aline Pereira


Share


Charles Baudelaire



Projéteis

"O amor é o gosto de prostituir-se."

"Os povos adoram a autoridade."

"No ato amoroso há uma grande semelhança com a tortura."

Higiene. Moral. Conduta.

"As humilhações que sofri foram graças a Deus."

Meu coração a nu

"O ser mais prostituído é o ser por excelência, isto é, Deus, já que é o amigo de cada indivíduo e o reservatório inesgotável de amor para todos."

"O homem de letras é o inimigo do mundo."

(Escritos íntimos)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



Resolvi escrever... começa quando eu acordo, e é sempre parecido. Nunca imaginei que pudesse ser tão previsível, de nada gosto, é um gosto de nada, sempre, e não acredito...

Pareço entediada, folheando uma ou duas páginas de um livro conhecido. Morro um pouco. Depois outro sobre vampiros, pornografia, e volto ao despeito em mais vaidades. Agora decadêcia e beleza. Os homens mais sofisticados são gays, e as mulheres podem ter uma beleza infernal. (Lestat não quer São Francisco de Assis como irmão...)

Aline Pereira