sexta-feira, 17 de junho de 2011


Sete anos depois e ele nunca saíra das posses do bode. Cultivava a terra, alguns animais do eterno patrão, pescava moedas o meu herói. Foi um caracolzinho até a casa cair, durante a tempestade de vento que também levou a única vaca do seu pasto. O verme que, na casa grande, roía indiferente as fotografias do álbum de família foi levado junto com as memórias. Sobrou apenas a alma de herói num corpo de vinte anos. Quis então ir embora, desaparecer pela primeira vez. Tinha um enorme cortejo de espíritos invisíveis que só os olhos de esmeralda, onde havia mergulhado na infância, conheciam. Desde então, ele captava os vislumbres da poesia no entreato de dois mundos. Também o guardavam os poetas, não como a adivinha das encruzilhadas, porque o futuro ele mesmo criava. Aquelas flores escuras, encontradas no casebre de Ismália, um escombro de alcova sinistra e mal-afamada, eram consoladoras, sempre de par com o feitiço. O homem enfim estendeu os olhos em volta e foi aí que percebeu onde estava: sirenes cantavam histéricas sobre automóveis cortantes, na poeira o sol deitava à margem da calçada, descendo pelo buraco do metrô, enquanto o céu grisalho escurecia encardido. Uma senhora de sobrancelhas levantadas conversava em voz baixa com outra calada. Era certo que o observavam censurando-o. Dali via muitas pessoas, e elas pareciam cadeiras altas demais. Sentia raiva da timidez que o envolvia num abraço de sucuri. Só, já noite sem lua, ergueu-se, pisou com o pé forte de matuto e passou largo até chegar exatamente a um palmo do rosto iluminado da jovem, que não tirou o nariz de cima do livro. Clara já o esperava. Nuvem sonâmbula bocejando carícias de brisa, Ismália se baseava no esquecimento. Na primavera, quando ia para a floresta prestar feitiços, deitava-se com o bode. Eram os seus momentos de imperfeição, longe dos imprecados templos de chá. De manhã, varria o jardim até que não restasse uma única folha no chão. Depois chacoalhava a pitangueira, e algumas vermelhas se espalhavam a seus pés. Clara era pedra, face parada, eternidade afônica num olho imenso, na sala de leitura, os dois avulsos piscavam. “Vamos ao cinema hoje?” Ele encolhe os ombros, sem saber o que é, e ela sorri como uma concha abrindo e fechando. O herói rubro, quase desfalecido com o encanto é interrompido por Ismália, e a outra mulher interroga: “O que você veio me dizer?” Ismália se inclina sobre a masculinidade e somente então ele recorda o que tinha ido fazer ali: - Bicho se caça a pau e pedra - e foi como se devolveram mais quentes que brasa por nove semanas e passaram três dias e meio comendo as corcovas do camelo que o trouxera no sonho. Depois, quando ele acordou finalmente, Ismália havia partido e, em seu lugar, Clara congelava a cama, os olhos abertos roubados da praia que ele ia conhecer ainda. Em suas metamorfoses a mulher saía da luz e era engolida pela sombra, para, depois de ter se desmanchado na onda mole, voltar ao brilho de um reflexo que a transformava em outra criatura. Seios, nuca, ombro, ventre, joelho, pé, forma antiga e novíssima. O homem era tragado cada vez mais pelo espetáculo do oculto. No decadente Stromboli, os palhaços cantavam: “Lasciatemi la notte... Il tempo che non passa, il buio che ti inghiorre... I ladri, gli assassini e altri venga piu um domani...” Naquele tempo, meu herói, curvado e agarrado aos pés da atriz, da leitora e de ambas, desfiguradas, viveu no aquário que era seu mundo à parte. Os livros folhados por Clara, contudo, tinham muito maior influência que a devoção diária do rapaz. “O corpo é belo, a alma imprecisa”, ele pensou. A vida não tinha cura. Examinou a sala. Vazia. Na ponta da mesa, Clara escrevendo. Ao certificar-se da presença contemplativa do amigo, sentiu que este trazia nos lábios, o que provocou um gesto de repugnância na mulher: “Não sei como apareceu esse palhaço na minha vida. Ele ri de mim desde criança, por isso o velho se foi na garra da onça. Estou cansada dele, não quero mais que me veja sofrendo a influência da lua.” Depois disso, a partida pela janela. Quem foi? Quem viu? Já sabem que bicho contra a parede se esvaindo foi Ismália, que vocês são testemunhas. Clara foi o contrário, sentada fosca na cadeira da biblioteca, com a boca cinzenta. Demoraram um tempo até perceberem que, de fato, não respondia. Foi aí que teve início a caçada ao meu herói. Todos o perseguindo, e o diretor atrás da história para um novo filme, porém o sertanejo corria muito adiante, batia os chinelos pelo concreto, valendo-se das pernas que repetiam: “Depressa!” Só parou quando sentiu a areia da praia, ergueu os olhos e viu o mar que era o olho gigante de Clara. “Bem como passa a água, será um novo começo.” E assim, o herói que eu escolhi, em odor de santidade, longe de cometer injustiça, foi mortalmente perseguido até que, por força de uma ordem que fez tremer a terra, desapareceu no oceano.

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